LISTA 1 DATA: 26 / 02 / 2016
Professor: PETTRAS
LITERATURA O OLHAR OBLIQUO DO MENINO POETA l Antonio Aparecido Mantovani 2 Rosana de Barros Varela
RESUMO Menino do Mato e um livro de poemas assinado pelo escritor cuiabano Manoel de Barros. A obra e dividida em duas partes: Menino do Mato e Caderno de Aprendiz, ambas apresentam ora um eu-lírico em formação, ora outro já dotado de consciência poética. Assim, o eu-lírico da poesia barreana se apresenta como um menino que busca a origem primitiva das palavras no intuito de "desver" o mundo a sua volta, ou seja, propõe uma ruptura com os padrões estéticos da linguagem em uso que resulta em uma visão obliqua do universo pantaneiro, a qual e regida pelo imaginário infantil. Palavras-chave: poesia mato-grossense, Manoel de barros, menino do mato.
Pra meu gosto a palavra não precisa significar - e so entoar. (Manoel de Barros)
A obra poética de Manoel de Barros possui uma linguagem singular a qual o eu- lírico se utiliza da criatividade pueril e propõe uma reinvenção de imagens cotidianas, bem como da própria palavra, na medida em que se recorda da infância que teve. Tal retorno ao ado pode ser observado no trecho a seguir, que consta na orelha do livro Menino do Mato: [...] Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comportamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua arvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e obliqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. E um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo l Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Professor de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT, Sinop-MT. E-mail:
[email protected] sem pudor. Eu tenho que essa visão obliqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as arvores.
Essa comunhão com a natureza nos remete a vivencia do poeta, nascido em Cuiabá em 1916, seu pai era capataz e, posteriormente, tornou-se fazendeiro, deixando como herança algumas terras na região de Corumbá, no Pantanal, local onde Manoel de Barros ou a viver a partir de 1949. A origem e a mundividencia do poeta e tema recorrente em suas obras, conforme se pode observar no poema intitulado Autorretrato Falado: Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, arvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos. Já publiquei 10 livros de poesia: ao publica-los me sinto meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças. Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo que fui salvo. Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso! Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço coisas inúteis. No meu morrer tem uma dor de arvore (BARROS, 1994, p. 107). Manoel de Barros ou a ser reconhecido nacionalmente a partir da década de 1970. Atualmente a critica o considera como "o melhor poeta brasileiro vivo" (MARQUES, 2004, p. 117). Menino do Mato, objeto deste estudo, e uma de suas obras mais recentes. Publicada em 2010, esta obra e dividida em duas partes, são elas: Menino do Mato e Caderno de Aprendiz.
Menino do Mato: um poeta em formação
A primeira parte de Menino do Mato, nome homônimo da obra em tese, e composta por seis poemas. Neles, o eu-lírico criado por Manoel de Barros sugere a presença de um poeta em formação - um poeta menino que, no limiar de sua consciência poética, encarrega-se de externar sua visão de mundo utilizando a linguagem típica das crianças, conforme se pode observar no seguinte excerto do Poema I: Eu queria usar palavras de ave para escrever. Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação. Ali a gente brincava de brincar com palavras tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra! A Mae que ouvira a brincadeira falou: Já vem você com suas visões! Porque formigas nem tem joelhos ajoelháveis e nem ha pedras de sacristias por aqui. Isso e traquinagem da sua imaginação. O menino tinha no olhar um silencio de chão e na sua voz uma candura de Fontes (BARROS, 2010, p. 9). O ato de "brincar com palavras" já existentes e criar outras - sem se preocupar com a logica -, o que o poeta denomina "delírio verbal", e a essência da composição poética, tendo em vista que e preciso, primeiramente, desconstruir o sentido comum para então construir algo novo: [...J O Pai achava que a gente queria dever o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver assim: eu via a manha pousada sobre as margens do rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra. Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras (BARROS, 2010, p. 9). Assim, pode-se dizer que a poesia barreana e pautada na liberdade em relação ao uso da linguagem, o que conduz ao ilogismo que, por sua vez, remete-nos ao devaneio de um eu-lírico infantil, já que "[...J a criança e o modelo exemplar a ser seguido pelo poeta, pela sua vinculação com a origem, com um estado anterior ao pecado, pela ideia de ilogismo, pureza, simplicidade natural e geradora de neologismos" (DAVID, 2005, p. 21). Em sua poética, Barros ilustra não somente a comunhão com a natureza, mas também a convivência cotidiana coma as pessoas que integram esse ambiente - tornando-as participes do processo criativo poético, tais como Bernardo, um peão da fazenda do autor, no Pantanal, homenageado em alguns de seus poemas: [...J Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um sapo com olhar de arvore. Então era preciso dever o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado. A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.
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O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das aguas e dos caracóis. A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias. Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia (BARROS, 2010, p. 10). Assim, recriar palavras no intuito de dar-lhes certo tom de absurdez, "desvendo" o mundo, e o que da a poesia um caráter de arte maior, indo ao encontro do conceito proposto por Paz (1982, p. 15), no qual a poesia e tida como "Arte de falar de forma superior; linguagem primitiva. Obediência as regras; criação de outras. [...J Regresso a infância". Tal primitivismo da linguagem provem de um conhecimento igualmente primitivo, ou seja, alheio ao academicismo e centrado exclusivamente em sensações apreendidas através dos sentidos: Nosso conhecimento não era de estudar em livros. Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos. Seria um saber primordial? Nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe (BARROS, 2010, p. 11). Dessa forma, nota-se a presença de uma linguagem sem pudores e, muitas vezes, desprovida de verossimilhança, sem, contudo, comprometer a sublimidade estética do poema: [...J Porem naquela altura a gente gostava mais das palavras desbocadas. Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento. O pai disse que vento não tem bunda. Pelo que ficamos frustrados. Mas o pai apoiava a nossa maneira de dever o mundo que era nossa maneira de sair do enfado. A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação (BARROS, 2010, p. 11). No trecho acima, pode-se notar que a desconstrução de imagens assume um papel primordial no processo de criação artística em que qualquer tentativa de explicar o inexplicável comprometeria a imaginação e, consequentemente, o sentido do texto poético. Outro ponto importante a ser observado diz respeito as reações dos adultos perante o imaginário infantil. Nota-se que, para eles, tudo não a de visões, ou seja, são incapazes de enxergar além das próprias imagens, o contrario do menino em sua busca constante por uma poesia livre capaz de sensibilizar, e não apenas informar acerca de situações cotidianas. Conforme assevera Barros (apud MENEZES, 2007):
E preciso propor novos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. [...J O envolvimento emocional do poeta com essas palavras e o tratamento artístico que lhes consiga dar, - isso que poderá fazer delas matéria de poesia.
Sendo assim, ao romper com a normalidade, o eu-lírico a a compartilhar com o leitor a reinvenção de imagens, "em função do pacto de leitura, de não duvidar do autor e sim compartilhar com ele a irrealidade das imagens" (CARPINEJAR, 2006). Essa visão obliqua das coisas resulta naquilo que o poeta denomina como "eios verbais": Certas visões não significavam nada mas eram eios verbais. A gente sempre queria dar brazao as borboletas. A gente gostava bem das vadeações com as palavras do que das prisões gramaticais. [...J
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A gente gostava das palavras quando elas perturbavam os sentidos normais da fala (BARROS, 2010, p. 12). Dentro desse cenário, mesmo as palavras que não possuem um significado logico embasado em aporte teórico especializado tem um valor inestimável para a poesia, pois contem uma relação de sentido com o texto como um todo e favorecem o devaneio, haja vista que, no que se refere a linguagem poética, "diariamente as palavras chocamse entre si e emitem chispas metálicas ou formam pares fosforescentes. O céu verbal se povoa sem cessar de novos astros" (PAZ, 1982, p. 42). A partir de uma linguagem livre de regras gramaticais e academicismos, Manoel de Barros "pretende anular a diferença entre o homem e o mundo, isto e, deter-se naquele espaço neutro entre os dois: a comunicação, a linguagem" (MARQUES, 2004, p. 111). Partindo dessa premissa, algumas de suas poesias são metalinguísticas e tem como tema a própria composição poética:
[...J Eu sonhava de escrever um livro com a mesma inocência com que as crianças fabricam seus navios de papel. Eu queria pegar com as mãos no corpo da manha. Porque eu achava que a visão fosse um ato poético do ver (BARROS, 2010, p. 15-16). Além da metalinguagem aplicada a uma poesia livre de tradicionalismos, o eu- lírico de Manoel de Barros propõe uma aproximação do homem com a natureza, sendo que muitas vezes estes se fundem:
Ele fazia parte da natureza como um rio faz, como Um sapo faz, como o ocaso faz. E achava uma coisa cândida conversar com as aguas, Com as arvores, com as rãs. (Eis um caso que ha de perguntar: e preciso estudar ignorâncias para falar com as aguas?) [...J O rio encostava as margens na sua voz (BARROS, 2010, p. 13).
Essa comunhão entre homem e natureza por vezes da lugar a noção de harmonia entre elementos opostos, tais como a agua e o chão pantaneiro, símbolos da origem da vida, os quais desencadeiam um processo de gênesis, análogo a agem bíblica da criação do mundo: Desde o começo do mundo agua e chão se amam E se entram amorosamente e se fecundam. Nascem peixes para habitar os rios. E nascem pássaros pra habitar as arvores. As aguas ainda ajudam na formação dos caracóis e das suas lesmas. As aguas são a epifania da criação. Agora eu penso nas aguas do Pantanal. Penso nos rios infantis que ainda procuram declives para escorrer. Porque as aguas deste lugar ainda são espraiadas para alegria das garças (BARROS, 2010, p. 21). A poesia barranca flui naturalmente, assim como as aguas do Pantanal mato- grossense, e aos poucos vai preenchendo lacunas ate então desconhecidas aos olhos do menino poeta. Para tanto, o poeta "precisa abrir mão das regras gramaticais, pois o sentimento poético e único, não pode ser conceituado ou definido, apenas sugerido por imagens que provoquem as sensações e a imaginação" (MARQUES, 2004, p. 112). Na medida em que isso ocorre, o eu-lírico em formação da lugar ao aprendiz, isto e, um poeta menino já dotado de consciência poética, o qual faz questão de relatar sobre sua trajetória em busca do conhecimento.
Caderno de Aprendiz: o despertar da consciência poética
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A segunda parte de Menino do mato, denominada Caderno de Aprendiz, e formada por trinta e seis poemas, nos quais o eu-lírico procura demonstrar seu aprendizado e experiência linguística, dando a impressão de que o menino pretende preservar a memoria da infância a partir de imagens obliquas. Verifica-se então a presença de um eu-lírico individualizado, contrapondo a primeira parte do livro, na qualha um tom de pluralidade devido a constante utilização do termo "a gente". Ademais, o mesmo tece poemas formados por um único verso, nos quais fica evidente a curiosidade do menino, nitidamente mais questionador do que antes: No gorjeio dos pássaros tem um perfume de sol? (POEMA 10) Eu vi a manha pousada em cima de uma pedra! isso não muda a feição da natureza? (POEMA 11) Visão e recurso da imaginação para dar as palavras novas liberdades? (POEMA 16) Além do caráter questionador, a convicção do eu-lírico no que concerne a sua relação com as palavras e explicitada em alguns poemas, evidenciando uma maior maturidade poética, ao mesmo tempo em que o menino poeta se vê circundado pela solidão durante o processo composicional:
invento para me conhecer. (POEMA 2) A infância da palavra já vem com o primitivismo das origens. (POEMA 5) Eu sustento com palavras o silencio do meu abandono. (POEMA 14) Eu vivo no meu relento. (POEMA 27) Os trinta e seis poemas de Caderno de Aprendiz variam entre poemas curtos que funcionam como pequenos instantâneos da natureza, capturados pelo olhar do poeta - e poemas que fazem referenciam acadêmicos, como e o caso do Poema 30:
Minha professora me emprestou um livro do Todorov. Todorov escreveu que a linguagem poética pertence a pré-história. Pensei que a conversa que ouvira, um dia, das rãs com as pedras e das pedras com aguas. Ravia de ser linguagem pre-historica e ate quase poética. Faltasse talvez apenas a harmonia das palavras (BARROS, 2010, p. 83). Ao citar, por exemplo, Tzvetan Todorov, importante teórico e linguista búlgaro - o qual apresenta conceitos de fantástico, estranho e maravilhoso -, Manoel de Barros reafirma o caráter erudito de seu fazer poético que, embora pareça simples pelo fato de se valer do imaginário infantil, e repleto de elementos culturais e filosóficos. Outra forma, entre tantas, que se verifica a consciência poética ocorre quando o eu-lírico, orientado por uma professora, se desapega de vícios e costumes linguísticos em sua escrita, conforme ilustra o Poema 22: Eu estava parado no meio de uma oração como se eu estivesse desenvolvido a vermes. Veio a minha professora e me ensinou: Tudo o que você tem de fazer e tirar do seu texto as palavras bichadas de seus próprios costumes - falou! Poesia e um desenho verbal da consciência! (BARROS, 2010, p. 67). Nota-se que a poesia de Manoel de Barros possui uma infinidade de imagens, todas relacionadas a memoria da infância do poeta no Pantanal. Sendo assim, tem-se uma poética centrada no próprio eu e sua visão de mundo particular: o tema do poeta e sempre ele mesmo. Ele e um narcisista: expõe o mundo através dele mesmo. [...J o tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou pantaneiro. Então, não e que eu descreva o Pantanal, não sou disso, nem de narrar nada. Mas nasci aqui, fiquei ate os oito anos e depois fui estudar. Tenho um lastro da infância, tudo o que a gente e mais tarde vem da infância (Barros apud MARTINS,
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2007). Nesse diapasão, Bachelard (1988, p. 99) afirma que, na lembrança, a escrita se vale de valores que regem a vida do autor no momento da composição, não correspondendo precisamente aos que serviram de referencia no momento exato do fato lembrado. Por isso, considera "as lembranças como pertencentes ao tempo em que se conta, sendo, por isso, iveis de constantes atualizações", Neste sentido, os elementos extraídos do cotidiano pantaneiro provenientes da lembrança de Manoel de Barros estão em constante mutação, pois são suscetíveis a liberdade linguística atrelada ao imaginário infantil. No ultimo poema do livro, pode-se ler no primeiro verso os dizeres "0 primeiro poema", Barros evoca a imagem de gênese, ao mesmo tempo em que explana sobre o aprendizado do eu-lírico menino com os sons da natureza: 0 primeiro poema: o menino foi andando na beira do rio E achou uma voz sem boca. A voz era azul. Difícil foi achar a boca que falasse azul. Tinha um índio terena que disque Falava azul. Mas ele morava longe. Era na beira de um rio que era longe. Mas o índio só aparecia de tarde. o menino achou o índio e a boca era Bem normal. Só que o índio usava um apito de Chamar perdiz que dava um canto Azul. Era que a perdiz atendia ao chamado Pela cor e não pelo canto. A perdiz atendia pelo azul (Barros, 2010, p. 466). o fato de a perdiz atender pela cor e não pelo canto remete a ideia de desconstruir o sentido comum, transcendendo-o por meio da palavra. Acerca da transcedentalidade evidenciada em sua poética, Barros (2000, p. 63) declara o seguinte: "[...J poesia pra mim e a loucura das palavras, e o delírio verbal, a ressonância das letras e o ilogismo. Sempre achei que atrás da voz dos poetas moram crianças, bêbados, psicóticos. Sem eles a linguagem seria mesma. [...J Prefiro escrever o desanormal". A partir dessa assertiva, pode-se dizer que o estilo singular de Manoel de Barros presente na obra Menino do Mato centraliza-se na releitura do universo pantaneiro, no sentido de "dever" as formas e usos comuns das coisas - oficio do menino poeta em continuo processo de descoberta do mundo - bem como retornar a origem primitiva das imagens no intuito de eleva-las a um nível de sublimidade poética.
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