Advento Erisiano Gabi Baderna
O que valeria à pena continuar fazendo mesmo se no que eu acredito estivesse errado? Um tratado erisiano acerca das verdades e dos bons costumes. Ou como encontrei o vazio e o que eu fiz com ele.
Sobre elA: Antes de tudo devo informar que na minha religião deus é mulher e se chama Èris. Por isso a chamam por pronomes femininos e se cuida pra não mijar na tampa do vaso. Você terá que adaptar o texto as suas noções de certo e errado, quando eu escrever, por exemplo, “A deusa”, você provavelmente, segundo os conceitos judaicos cristãos ocidentais pós-modernos, poderá entender “O Deus”. Há diversas outras adaptações necessárias, mas todas similares e igualmente fáceis.Isso nos leva ao primeiro teste da proposição: Se deus é uma mulher e estamos errados, então deus não é uma mulher. Valeria à pena continuar chamando ele de fêmea? Eu penso que a questão é muito pessoal e não podemos pressionar. Quando ele/a resolver sair do armário e levar esse assunto a público não restará incertezas. Chamar deus(a) de mãe é mais apropriado, as metáforas se casam. E esse ‘deslize’ seria esperado e certamente perdoado. Quem gera o próximo em seu ventre é o feminino, é quem cuida da nutrição, do desenvolvimento, quem acolhe. A mulher está para o indivíduo assim como deus(a) está para a humanidade. O resto deve ser inventisse de quem veio de chocadeira, seria natural e espontâneo entender deus(a) como elA. Mesmo se estiver errado, faço com respeito e por carinho. Dizer diferente seria trair o que sinto. Todos temos umbigo, isso é das verdades mais onipresentes e cutucáveis, é o vínculo que nos trouxe do ‘mundo-antes-denós’, nossa origem.
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Verdade, nos é dado ver: Estar errado é um ótimo exercício da nossa deusa. Algumas das nossas leis são absurdas e contraditórias! Às vezes estamos com tanta firmeza que nem desconfiamos do óbvio, essas convicções ficam rígidas e nos limitam. Outras vezes até machucam. A certeza é uma ilusão pra se diluir a insegurança, emborca num desejo de controle e providencia uma autoridade. Este medo é compreensível, provém da aflição e do desconsolo. Reservamos as terças, as quintas pra estarmos errados. A segundas e domingos pra estarmos redondamente errados e as sextas e quartas para termos dúvidas sinceras. Isto evita queacreditemos no nosso ponto de vista e não consigamos mudar. Estar convicto parece um veneno, demonstra ferrugem nas dobradiças. É um alongamento mental, mantêm a jovialidade, um jogo de estica, puxa e torce pra descobrir frestas. Por exemplo, o nome de um sumo pontífice rupestre hindu pode ser traduzido aproximadamente por: “Todas as afirmações são verdadeiras em algum sentido, falsas em outro sentido, sem sentido em alguns sentidos, verdadeiro e falso em outros sentidos, falsas e absurdas em outros sentidos e verdadeiras e falsas e absurdas em alguns sentidos”. Todas as informações sobre a vida desse sacerdote foram perdidas ou foram inventadas. Não temos o delírio de estarmos certos, não precisamos e não buscamos isto. O papel de juiz não é o nosso e percebemos que não controlamos as interpretações que algo pode deter. Depositar confiança nisso ou daquilo é ignorar seu poder de silêncio e as mil faces secretas sob a face neutra. Pense no grafite borrifado na superfície pra evidenciar as impressões digitais, ou nos rabiscos à lápis sobre uma folha branca pra enxergar algum decalque. ‘Verdades’ são esses grãos sólidos depositados numa forma amorfa pra contornar e expressar relevos que estavam latentes. São artefatos lógicos que servem para dar perfil aos buracos que estavam camuflados. Escolhermos qual verdade é mais util. O objetivo não é estar certo! E estar ‘certo’ frequentemente cria a vontade de que o outro esteja ‘errado’, parece um equívoco que duas verdades sejam verdadeiras e sejam mutuamente contraditórias. Reservamos os sábados para isto. Alguns de nós estão ocasionalmente certos, mas não significa que alguém se importe.
E agora José?: A Sociedade Discordiana não tem definição. O escritório geral para assuntos miúdos é pra fazer, não pra explicar. Logo nas primeiras páginas do nosso
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livro sagrado há o Manual Prático para Dissidência e Autonomia, com todos os sacramentos necessários para oficializar um novo evangélio e como se registrar formalmente como um Papa. Seguir as regras não é estritamente necessário, o importante é conversar diretamente com a deusa (usamos a glândula pineal para esta função), ela sempre enfatiza nossa liberdade e abastece nossa potência. Há um conceito reincidente que é conhecido como “FNORD”, mas tão pouco ele é definido em qualquer lugar. As técnicas erisianas buscam gerar e aprimorar fnords, são armadilhas engatilhadas na trajetória específica de alguma verdade, tencionam engasgar a compreensão tradicional e libertar para novas formas. Não dá pra definir justamente porque ele é um defeito no que define. É um drible no carma daquele conhecimento. Essa indeterminação é o que faz as estratégias sobreviverem como válidas e funcionais. Ou seja, podemos estar certos ou errados, de qualquer forma nossos fnordes fnordeiam, nosso foco se expande e assimila o contexto. Não fazemos isso por afronta atrevida ou necessidade de sucesso, simplesmente não estamos tão viciados naquelas diretrizes a ponto de não enxergar texturas e malhas que a verdade específica ignora. A prática erisiana justamente hipertrofia esse reconhecimento de padrões e desvios de toda multiplicidade relacionada. A Ordem existe e nela em si não há nada de errado. A questão é quando ela se torna dura e exige se separar do Caos, vinga-se uma espécie de alienação que entorpece uns do resto. Porém o estático definha e perece na dinâmica e a sua renovação é um auto-suplício. É uma lei de entropia que a “imposição daordem implica no crescimento maior da desordem total”, chamamos isso de badtrip dos caracinzas. A primeira evidência da ordem exagerada é a perca do humor. Não conseguimos definir seriamente humor, mas é um senso comum que tem alguma coisa a ver com alegria e risada, talvez mais com graça que com risada. Também há momentos de humor nada cômicos em que estamos todos sérios, estes a gente não entende mesmo e já desistimos de explicar. Alguns dizem que humor é o que se sucede após um fnord, o átimo do imprevisto quando a consciência troca o tênis. Mas isso é muito genérico uma vez que fnord também não dá pra definir ou classificar, nem dá pra localizar. De qualquer forma o humor vale à pena mesmo quando estamos errados. Arrisco a dizer até que as gargalhadas são mais estrondosas precisamente quando descobrimos que estamos errados, e quando rimos com os outros de algo que nos une e compartilhamos. Então fazemos fnordes pra atravessar e implodir com humor a Ordem. Não olhe isto pelo viés terrorista, nossa deusa é uma criadora exímia, muito fecunda. O substrato se renova fértil, os signos rodopiam numa ênfase de se recriar. Um redemunho no meio da rua. A Ordem descasca e o Caos 3
brota, a vida se renova desejando mais humor, mais energia e a inovação se retroalimenta. Vemos que os discursos sobre algumas verdades atormentam, as vezes nos separam dos outros e de nós mesmos. Nossos desejos seriam a propulsão para criar e encontrar, mas muitas vezes são estigmatizados. Dogmas cravam muros tentando fazer pontes e a força do concreto as mantém por gerações. Fnords são as rachaduras. O discordianismo é o riso de tudo que é sagrado, o que for oco vai ruir, o que tiver vida vai responder com outra risada alegre. A deusa mora em cada um de nós e nos empresta sua força criativa, cada um tem seu charme e seu cheiro, de cada um nasce uma cor diferente, o fluxo se mistura, reage, aflora. O empenho erisianoestá em resgatar os embotados, aqueles que se prenderam e deixaram de exalar. Está em multiplicar as conexões e sintonizar a rima e a dança.
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Como é instituído a sua igreja? Um tratado erisiano acerca dos formatos e tamanho. Ou como encontrei as dobradiças e o que eu fiz com elas.
P.O.E.E.: “ CARO DEUS; ESTE TELEGRAMA É PARA LHE INFORMAR QUE SUA POSIÇÃO CORRENTE COMO DIVINDADE ESTÁ DORAVANTE CANCELADA. PT. SEU CHEQUE SERÁ ENVIADO PELOS CORREIOS. PT. FAVOR NÃO ME USE COMO REFERÊNCIA.
RESPEITOSAMENTE, MALACLYPSE O MAIS JOVEM POLIPADRE, ALTO SACERDOTE DA POEE ” Uma forma que muitos entendem a cabala discordiana é como uma guerrilha cultural anarcozen. São trocadilhos e absurdos que infectam o raciocínio, parecem piadas inofensivas, mas subvertem as regras sem deixar rancor. O cômico funciona deslizando fissuras ao corrente. O telegrama acima foi retirado da Principia, provavelmente circulou separadamente antes dela. É só uma piada... E esseatrevimento mostra que é possível pensar diferente. Usa-se metáforas e analogias pra fugir dos sulcos tradicionais, assim desarma-se gatilhos. Deus é só uma figura pública burocrática que pode acabar o mês sem salário. POEE é uma desorganização religiosa para fundamentalismo, não é reconhecida oficialmente pelo estado ou governo (o que é muito justo, pois a POEE não os reconhece também). Ela possui 5 degraus: Discípulo, Legionário, Sacerdote, Polipadres e Papa. Há diversos batismos e sacramentos, são paródias de outros cultos e tentam despertar o senso para o absurdo que as tradições podem assumir. 5
Criar cabalas dissidentes não é apenas sugerido como é incentivado. Algumas agens da Principia indicam que a deusa pode fazer revelações para você que não precisam ser nem ao menos compatíveis com as outras. Mesmo em caso de esquizofrenia não é argumento pra se desconsiderar suas verdades. Então, além da POEE, há incontáveis cabalas oficiais, algumas são de uma pessoa só, outras pairam no limbo sem um nome. Também existem aquelas discutidas longamente pela internet e outras do tamanho de uma sulfite. Aqueles que não criam sua própria cabala nem estão nas cabalas de outros são conhecidos como Legião da Discórdia Dinâmica. Também existe o Exército Invisível, são todos aqueles que cooperam com o Caos de forma ativa porém não sabem disso. Provavelmente você pertencia ao Exército. Se você está lendo este texto, poderá criar sua própria cabala. Qualquer pessoa pode criar sua própria cabala. Não só pessoas criam cabalas. O Discordianismo vem trazer a boa nova de que sois livres. “ NONSENSE COMO SALVAÇãO A raça humana irá começar a resolver seus problemas quando cessar de se encarar tão seriamente. Para tal fim, POEE propõem o contrajogo de NonSense como SalvaÇão. Salvação de uma existência feia e bárbara que é resultado de tomar a ordem tão seriamente e temer tão seriamente ordens contrárias e desordem, que JOGOS são tomados com mais importantes que a VIDA; em lugar de tomar A VIDA COMO A ARTE DE JOGAR JOGOS. ”
Lei do 5: A lei do 5 tem origem na própria consciência, diz que todas as coisas acontecem em cincos, ou estão de alguma forma direta ou indiretamente relacionadas a 5. A lei do cinco nunca está errada, antes de concluirmos responda “por que os objetos sempre estão no último lugar que se procura?”. Simbolicamente o pentágono representa a ordem formal e está vinculado ao princípio anerístico. Por outro lado o princípio erístico é expressado pelo 23, sendo 2+3=5. Veja que o todo é muito mais que a soma das partes. Nos artigos Erisianos existe um memorando de Omar para Mal2: “ Eu descubro que a Lei dos Cincos é mais é mais manifesta conforme eu presto mais atenção. ” Temos uma metralhadora giratória de conceitos, cada disparo é uma tentativa de emoldurar um caótico e incomensurável desconjunto de perceptos
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numa figura reconhecível e manuseável, numa imagem separada do fundo. Este reconhecimento de padrões pode dizer respeito muito mais as expressões regulares acumuladas que propriamente ao relevo. A lei do 5 diz que dado qualquer conjunto de afirmações sempre poderemos reorganizá-las para obtermos uma conclusão qualquer. Isso pode nos levar a um efeito tostines: Acreditamos porque é verdade ou é verdade porque acreditamos? O ponto de vista privilegiado se acostuma e a achar normal, depois luta para se manter. Pior, existe estruturas que se reafirmam correndo o risco de viciarem em si mesmas, um looping que se realimenta cada vez mais. Visto de dentro do cubo uma explicação pode reforçar ainda mais o cubo, parecendo cada vez mais sensato e coerente. Pense em qual a probabilidade de você ganhar na mega-sena (praticamente zero), depois qual a probabilidade de alguém ganhar este mês (praticamente 1), qual a probabilidade desse alguém se achar especial por ter ganho? Por mais azarado que você se considere, continuar procurando por algo depois de já ter achado é estupidez. Contudo, o que não está aberto a mudança está condenado a perecer, novidades são inevitáveis e certezas absolutas não lidam bem com elas. A maldição dos caracinzas ainda diz que a conduta de impor a ordem causa uma desordem maior, é possível abarcar domínio maiores às custas de reservas de entropia, porém depois a própria ordem a a se degenerar. A maldição está justamente na maior tendência anerística quando a decadência aumenta, tornando o desastre acelerado. A lei do 5 expõem o tamanho das prisões que podemos inventar, mas também garante que podemos sair. A mesma compulsão e imaginação podem ser usadas para descontruir, e a sabedoria vem de saber um ritmo que te calha bem.
Direitos Revertidos: Significa que todos os direitos autorais am para quem fez a cópia. Isto foi antes do opensource e creativecommons, é muito mais sabotador. Quem multiplica não está apenas fazendo uma réplica, torna-se portador daquele conteúdo, está em simbiose direta. Num mundo de catracas e impostos ganhar um fnord é plantar sementes na alma. Generosidade e abundância é uma máxima erisiana, todo tipo de fartura e diversidade. Há uma ânsia criativa, uma compulsão por combinar, associar, discorrer, percorrer, remendar, perfurar, desfocar, ventilar, enxertar, cantarolar, rodopiar e também tem algumas coisas redondas, pequenas e coloridas que eu não sei o nome, elas fazem um barulho legal quando apoiamos o cotovelo. Na Principia foi feito advertências claras sobre a reversão monetária. Não confunda nosso humor com entretenimento. Discordianismo é uma religião, possui dogmas e rituais. Define princípios
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e objetivos, declara o que deve ser valorizado e o que deve ser desmontado. Existe métodos e práticas, atrevimento e criatividade são medidos, analisados e catalogados. Também existe exercícios e os ideais são constantemente depurados e revisados. Os caracinzas não são nossos inimigos, de fato são eles os que mais contribuem para o Caos. Eles só estão perdidos numa viagem ruim, obstruídos pelo medo e incompreensão. E têmtodo o direito de permanecerem como quiserem ou mudar para o que preferirem. Não se combate o anerísmo com uma ética do comportamento que os outros devem seguir, isto seria algo anerístico! Este trabalho discordiano é um trabalho sobre si mesmo, não é uma explicação, é uma busca. Um malabarismo entre o que está escrito e o que está sabido, uma tormenta desfilando guizos e lâminas. Copiar é pouco, é preciso deturpar, fecundar, use como quiser estes textos porque ele existe na forma que está vendo apenas na sua cabeça, é exclusivamente seu. Recomendo conferir os acentos.
É UM VENTO DOENTE AQUELE QUE NÃO LOGRE NENHUMA MENTE.
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Qual o mito da criação? Um tratado erisiano acerca das sementes e dos adubos. Ou como encontrei as tomadas e o que fiz com elas.
Resposta fundamental: É 42. Mais especificamente: Página 42 da Principia. Nela há uma parábola que conta um dos momentos de agem entre um padrão erístico para uma visão anerística. Esses ciclos se recontam e se redobram criando toda a existência e se autocontendo, pegue um fragmento e por recorrência chegará a qualquer universo. Nesta agem diz que no ano 1166 a.C. um infeliz pensou que o universo era tão sem humor quanto ele, que a diversão era pecaminosa e contrária a Ondem Séria. Depois outros começaram a seguir essas ideias e as colocar em prática. E assim chegamos aonde estamos, com eleições presidenciais e garrafas plásticas retornáveis. O Caos Sagrado é simbolicamente expresso com um yin-yang, mas ao invés de uma pinta branca no preto e uma preta nobranco é uma maçã dourada e um pentágono (os chineses eram um pouco míopes). Esse disco está girando como um peão, em seu eixo está o Vazio e suas partes são nomeadas Tipo-Dai. Não se confunda com as definições, é uma velha tradição discordiana nunca concordar com elas, o nome que pode ser nomeado não é o Eterno Nome. A manifestação disso é que o rodamunho se equilibra, suas forças contrárias não se anulam, porém se dinamizam numa renovação piruetal. A precessão de cada volta colori um atrator e desse puxa-inverte pendulante o fractal se compõem. Dado uma imensidão sem sentido, notamos os glóbulos de coerência, depois tentamos erguer castelos com eles e alcançar a explicação de tudo que o raciocínio vislumbra. Esse movimento constrói abrigos e tecnologias, consolida estratégias que funcionam práticas com a realidade, um fio condutor lógico arremata o consequente num disparo simples. E a comodidade cria vícios e aliena, o caracinza deseja a ividade e acredita que ela seja justa e sensata, um direito do fazer sentido. Sua expectativa é da realidade caber neste universo acabado e definido, é capaz de atrocidades pra fazer isso, até
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de perder o bom humor. Num sistema cada vez mais completo e unificado, perceber as assimetrias ou inconsistências é cada vez mais latente. Aparece a maçã bem no meio do Dai.
Criação de universos: Eu realmente não sei muito a esse respeito. Desconfio que meu entendimento não consegue captar essas escalas. Pensos coisas de mais ou menos 1,7 metros e 70 quilos. Coisas que não ficam muito contentes sem atmosfera ou longe 300 kelvins. Claro, há as metáforas. São artefatos cínicos que reencenam um sentido já absorvido. Botam outros atores e a mágica reside na conclusão, pensamos deles o mesmo que a peça encerra e às vezes a atuação nem merece. Assim a gente consegue titerear com a carne humana o que não é humano, torna-los cognoscíveis, um sopro de vida para o abstrato. Penso o planeta Terra como uma bola azul no espaço. Esta ideia está equivocada em vários sentidos, talvez não naqueles que eu precise pra ela orbitar em volta do Sol, ou enviar um foguete à Marte, só que diz mais respeito a facilidade das minhas mãos de lidar com esferas. Do ponto de vista da Lua uma bola que é um pequeno planeta. O erisiano conta histórias pra descobrir a si mesmo, pra criar emoções e cutucar a indiferença. Pra lembrar do que nunca soube. Nossos mitos da criação encarnam sempre os mesmos dilemas correntes em arquétipos diferentes, é um eterno recontar das mesmas coisas, das que valem à pena. Um exemplo, outro e mais um, a pedagogia da resiliência, como transformar o que não está bom em algo melhor? Acreditar numa história é ser vítima dela, por isso incentivamos a sátira, por isso não temos pudores em remix. A dualidade Tipo-Dai é um esquema tático que parece universal, mas na verdade diz respeito a como se percebe algo. Associando ou Contornando. Dai cria sucessões, encadeia e ordena, engata a consequência num afinco de quem demonstra, enrijece e articula o próximo, dá um o. Exige axiomas iniciais e seu perigo é de construir armaduras ocas. Tipo é o contraponto, faz analogias, é como dar exemplos, articula o distante com o semelhante. Exige elasticidade e seu perigo é o de não fazer cabimento.
Uteroverso e Tenorme: Antes do princípio havia o inexistente e foi assim por tempo nenhum, porque só havia nada. Por acontencidência virou o vazio, e para efeitos persuasivos chamaremos de Vazio. Esta variação define o Caos Sagrado mirabolando no Vazio absolutamente pleno.
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Caos Sagado também é nomeado Caos Bruto ou Caos Absoluto. As infinitas versões de tudo que existe, de que não existe e de todo o resto e muito mais se aninham nesta singularidade. O Caos é composto pelo Tipo e pelo Dai em reciprocidade ao Vazio. Tipo é a conjuntura erística; Dai, anerística. Os dois princípios isolados não se sustentam, precisam do seu dual para germinarem e expandirem, sua exasperação causa sua própria decadência donde renasce seu reverso. É como se o Vazio tivesse duas filhas, Èris, a menor, vinculado a tudo que existe e que muda. E Anéris, a maior, ligada a tudo que não existe. Comprovamos o fundamento de que Anéris é a maior comparando o grande número de coisas que não existem com o número de coisas que existem. Èris nasceu grávida e depois de uma longa gestação de à luz a muitíssimas coisas. èla começou a brincar com seus filhos e os ensinar erisianismos e caosismos. Seus filhos existentes começaram toda sorte de mudança por todos os caminhos, às vezes se agruparam e às vezes se entrecortavam. Anéris nasceu estéril, quando viu sua irmã se divertindo tanto com todas as coisas existentes quis algumas delas para si também e as transformou em coisas não-existentes. Èris jurou que não importava quantos de seus nascidos Anéris tomasse, èla criaria muitos em seu lugar. Em troca Anéris jurou que não importava quantas coisas existentes Èris fizesse ser, ela iria eventualmente as encontrar e transforma-las em coisas não-existentes dela. Até hoje é desta mesma forma que as coisas aparecem e desaparecem. Èris teve um problema de espaço com tantas coisas novas borbulhando, precisou separar umas das outras e depois percebeu que algumas só vinham quando não outras. Ela chamou aquilo de espaço e isto de tempo. Depois estudou formas mais eficientes de gerenciamento e chamou a técnica de burocracia. O que sucedeu foi uma crise gigantesca com a falta de papel, pastas e clips suficientes. Preocupada em estabelecer a ordem, um dia Èris notou a desordem. “Haah”, èla pensou, “Isso deve ser um jogo novo”. Èla ensinou ordem e desordem a brincar uma com a outra, e a fazer voltas entretendo-se mutuamente. Percebendo tremenda semelhança resolveu chamar a franquia da desordem por erístico, por ser uma criatura anárquica, e com um sentimento de simpatia pela sua irmã solitária, chamou a parte da ordem de anerístico (o que acalmou anéris e diminuiu um pouco suas diligências). Vazio percebeu que suas filhas recriaram elas mesmas e que não era mais possível distingui-las, nem uma da outra nem as filhas das mães. Eram fases de uma onda irradiante, tipo a força magnética e a elétrica que perpendiculares se reforçam e dai seguem num terceiro caminho. Não conseguindo achar um nome para esse novo sentido, Vazio consultou suas filhas e pediu conselhos, uma sugeriu “Tegrande” enquanto a outra quis “Tesão”. Isso causou grande curiosidade e se tornou motivo de muitas controversas e reviravoltas, não sabiam se era causa ou consequência da fricção 11
entre as partes, mas certamente dava uma direção. Para evitar conflitos Vazio chamou apenas de T. As irmãs ficaram em puro êxtase, tinham um irmão e ele residia tanto as coisas que existem quanto nas que não existem. As duasse embalavam nele e se reconheciam, notaram que ele está presente em vários níveis e de forma muito intrincada. T ou a ser sentido em cada detalhe, dava a orientação em cada desenlace. É o que faz o universo se expandir e retrair, as estrelas queimarem e os peixes nadarem. Impressionante como ele não foi notado antes, nomeado antes. É como sentir coceira nas costas e não conseguir alcançar. Anéris o entendia mais como uma recompensa, enquanto Èris como um testemunho. Lidar com T às vezes traz transtornos e equívocos, outras somo o e dele mas não o burilamos muito. De qualquer forma ele está presente em tudo e é a força invariante no erismo e no anerismo. Èris istra T diariamente, faz festas com ele e sempre o convida pra alguma novidade.
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Qual o papel das crianças e jovens na sua religião? Um tratado erisiano acerca das brincadeiras e das histórias. Ou como me encontrei e o que fiz comigo.
O negócio é ser pequeno: Crianças são a alma do negócio. Suas cabeças desproporcionais fazem perceberem um mundo completamente diferente. Olhos, ouvidos, boca e nariz maiores que joelho e pé, suas ideias dilatadas baloneiam levadas e arteiras com qualquer ventinho. Não houve tempo para as certezas se afirmarem firmes, as verdades residem num aprendizado fresco. Pode não ser e podesó fazer de conta. O inesperado é hábito e a fantasia é pura ocupação, um delírio no deleite de cada grão de areia em sonhos. Essas propriedades são o graal da alquimia erisiana, pensamos nela como a lucidez de quem ainda tem toda a existência pela frente. A verdejância dos brotos. Memória é um pecado e deve ser usado com sabedoria. Ela define a escala característica para cada mente, qual a amplitude que o ordenamento conseguiu equilibrar. Se o seu tempo de meia vida é um salário mensal, tudo que for muito maior ou muito menor do que isso a invisível. Este como se fixa procurando os mínimos divisores comuns entre o que acontece e as células temporais, existindo ou não. Construímos fortalezas intelectuais que com o próprio peso naufragam no ado. Por mais realista que seja a percepção da realidade não é a realidade percebida, são pincelada de contorno que se encaixaram bem naquela hora. O acúmulo de cultura pode ser um mapa desatualizado que te leva a ruas sem saída ou estabelece labirintos, pode ser a sua própria ruína. Perdemos o hábito de estarmos novos logo depois que nos acostumamos, amos até a acreditar que somos e nos apegamos. Recalibramos toda a existência a partir do nosso ponto de vista, e ele vai ficando dilatado, do tamanho de uma vida, o que parece muito. . . O que parece tudo. . . O nome desse processo é “caracinzalização”, focaliza-se a estrutura e se ignora a
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dinâmica, o tamanho vira um fardo, o de sempre repetidamente, uma recópia da cópia da cópia da cópia perdendo o contraste e ficando cinza, não se brinca mais com o eterno retorno, não é mais uma fonte de entusiasmo e reafirmação. Oras, foi o que construímos que se tornou grande e ingovernável, pesado e monótono. O que pela força da mente foi feito, pode ser desfeito. A ordem é o substrato nutritivo que o Caos infecta pra depois esporular, daquele corpo novas singularidades germinam recomeçando os esquecidos pequenos. Por que crianças são alegres e faceiras? Qual propriedade elas detêm para que a energia circule como se não coubesse? A gente deveria cortar o açúcar da dieta delas? O que o discordianismo prega é que esta imponderável leveza deve ser reconstruída aqui. Vivemos uma época que verdades e certezas são comunicáveis muito rapidamente, por todos os lados e níveis há conexões consolidando geometrias que buscam uma expansão absoluta e conflituosa, engolindo nossas existências. Erisianismo são técnicas de rejuvenescimento, brincamos com os estelionatários intelectuais desarmando suas perversões, um contra golpe franco da inocência do riso.
Precocidade e Imaturidade: A construção do imaginário e subconsciente está cada vez mais globalizada e homogênea, mediada pela publicidade onipotente e através de uma rede de comunicação onipresente. Não há mais ritos de agem e tão pouco uma divisão nítida entre o universo do adulto e da criança, mesmo os trabalhos que exigem formação superior limitam-se as mesmas responsabilidades e diretrizes inculcados na pré-escola, é uma extensão direta. Horários, afazeres sistemáticos, produtividade avaliada. Assim também nas artes quanto nos esportes. Mesmo aqueles que estão marginalizados orbitam os mesmos desejos de sucesso e prosperidade. Forma-se adultos prematuros em suas redomas minúsculas e sem rupturas, um ser embolhado que só sabe forçar mais ou menos o mesmo caminho e sem perceber o confinamento. As habilidades cognitivas mínimas são climatizadas e diluídas para que operem como espontânea desde cedo, antecipa-se o essencial para que não e disso. São torcedores, transmitem uma força no tecido social sem criar ou absorver. O problema da história única é sua persuasão, corremos o risco de acreditar nelas, de acreditar que elas são mais do que histórias. Essa cosmologia capitalista ocidental hipermoderna é igual o cimento, quanto mais lentamente secar, mais rígido se torna, este enredo vai sendo adicionado progressivamente mantendo a compatibilidade, estendendo e unificando. A história única se torna a verdade, não é mais uma brincadeira. Não brincamos com ela com medo de nos machucar de verdade.
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Um só tamanho não veste todos bem, o discurso normal galopante devora sem mastigar direito. Não é um erro compactuar com o que todos pensam, o problema é quando isto acontece por ignorância de todas as outras zilhares de possibilidades, não é uma escolha por afinidade interna, é por falta de alternativas. De qualquer forma, normalmente, a média é medíocre, pior é quando ela se aliena exprimindo uma ânsia por permanecer como está, quando os equívocos são sempre dos outros e a existência é injusta por não lhe dar folga. Torna-se um adulto funcional.
Travessuras e Gostosuras: Na cirando do tropeço nomes de heróis e de encantamentos, gira e reverte e solta e pula, barquinhos e fitas coloridas, as nuvens são de comer e o chão é de riscar. Aquelas penas são prafazer voar, o drama é apenas um enfeite pra dar um efeito retumbante. Barbante, calçadas, satélites, vestidos, acerola, fotos de lugares bonitos e alguém chamando no rádio. Por que essa sua expressão na cara? Sem constrangimentos aqui, ninguém sabe o que está fazendo antes de ter inventado. Talvez você goste e queira um pouco mais. Nos dizem tantos “nãos” que depois não sabemos o que fazer, sucumbimos aos deveres porque a vontade própria não foi estimulada. Não basta poder mais ou menos, sempre será insatisfeita enquanto a vontade não for a nossa. Ela precisa de um pouco de exercícios pra ativar a circulação. Se permanecer rasa acaba numa indolência compulsiva e escapista, o suficiente para sermos casados, fúteis, quotidianos e tributáveis, mas não pra sermos nós mesmos. Brincando de inventar a gente, às vezes, acerta o certo, o que nos cabe bem. E vamos ficando cada vez melhor nisso, geramos um número maior de composições e cada vez mais são afinados com nossos sabores e desejos. Estar criança não implica insensatez. Há os apanhadores e batedores no campo de centeio, somos também os brinquedos, as bolas e as pipas, as bonecas e as ferramentas que se fingem de inanimados para as crianças brincarem.
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P.S.: :/ existia uma quinta epístola, mas eu perdi ela. . . O mote era “Qual seu testemunho”. Este foi um duelo contra um colega adventista, alternadamente escolhíamos um tema e todo final de semana mandávamos nossas palavras de evangelização um para o outro. Acredito que produzir discordianisses é o verdadeiro caminho, você só entende mesmo fazendo o seu, vai no rumo e sente como se fosse. Tenho que voltar a fazer isso. Meu bem, vamos dançar. Salve Èris!
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